terça-feira, 26 de agosto de 2008

O quadro negro da educação escolar brasileira


A Revista Veja publicou, na semana passada, uma reportagem a respeito da educação brasileira baseada em pesquisa que encomendou à CNT/Sensus. De modo bem resumido: o resultado aponta que o ensino escolar brasileiro é aprovado por professores, pais e alunos tanto da escola pública quanto da privada.
Qual o problema de tal parecer de todos os envolvidos na questão do ensino escolar? É que o resultado das avaliações das quais o alunado brasileiro participa mostra que o conhecimento que eles têm é de baixo, bem baixo nível, comparado ao de alunos de outros países. Só como exemplo: o Brasil está em 52º lugar em ciências e em 53º em matemática em uma lista de 57 países. Isso quer dizer que os melhores alunos brasileiros ficam nas últimas colocações em tais avaliações.
O que os pais podem fazer para ajudar a melhorar esse quadro? Em primeiro lugar, cobrar da escola que seus filhos freqüentam que esta ensine aos seus alunos - e exija a realização diária - os requisitos necessários ao trabalho intelectual. Atenção, concentração, persistência, esforço são, entre outras características, aspectos importantes do aprendizado. Disciplina para e pelo trabalho é o que deve ocorrer na escola.
Quando entro em uma sala de aula e vejo alunos fazendo lições ou assistindo à aula balançando constantemente a carteira, brincando com o material desnecessário que carrega consigo, sentados de qualquer maneira e conversando freneticamente, constato que a disciplina para o trabalho intelectual não faz parte da exigência dos professores. E isso não se pode esperar que o aluno aprenda em casa porque é na escola que ele se inicia nessa função.
Outra coisa que chama muito minha atenção é que, quando o professor faz alguma pergunta a respeito do que está ensinando e os alunos respondem, os argumentos usados por eles são muitas vezes vazios de sentido, a linguagem é rasa e, mesmo assim, os professores aceitam o que os alunos dizem sem observação alguma.
Por outro lado, os pais precisam de distanciamento da escola para ter uma visão crítica do trabalho que ela realiza. Hoje, o mais comum é que os pais desenvolvam uma afetividade pela escola muito estimulada pela proximidade com os profissionais que lá trabalham, que os alunos aprendam a gostar dos professores e, assim, a submissão aos afetos compromete a visão crítica do que lá acontece.
Precisamos e podemos mudar, mesmo que vagarosamente, esse quadro. As novas gerações brasileiras merecem um ensino melhor, praticado com seriedade e o rigor que o conhecimento exige. A hora de brincar na escola é a hora do recreio. Durante as aulas, é hora de trabalho, trabalho e mais trabalho.
Como eu já disse, as crianças não são de cristal: elas agüentam, sim, aprender e estudar sem que o clima da sala de aula seja parecido com o do recreio.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Introdução à Filosofia Política


“O homem é, por natureza, um animal político” – Aristóteles

A maioria dos americanos não entenderia a afirmação de Aristóteles de que o homem é, por natureza, um “animal político”. Reconhecidamente, a maioria dos americanos não pensa em política. Eles estão ocupados demais trabalhando e cuidando de suas famílias. Eles estão vendo TV, jogando videogames, tendo casos amorosos e praticando hobbies. Como, então, eles poderiam ser “animais políticos”? A resposta é muito simples. O americano moderno pertence a uma nação: uma sobre a qual é possível argumentar que seja a mais bem-sucedida e poderosa na história do mundo. Pertencer a uma nação – grande ou pequena, rica ou pobre – é altamente significativo. Se você perdesse a sua nacionalidade amanhã, rapidamente sentiria a sua falta. Pertencer a um grupo maior é uma realidade humana fundamental, quase como a identificação sexual.

Homens e mulheres são criaturas políticas porque são compelidas a se juntar a outras, por segurança e para preservar sua propriedade. Homens e mulheres nascem em famílias que pertencem a um grupo étnico maior – previamente embutido de noções de identidade e aversão. Se você nasceu na Margem Ocidental ou na Irlanda do Norte, nasceu dentro de uma situação política. Você é formado por ela. A política lhe é dada ao nascer. O teórico esquerdista que imagina poder ver-se livre da realidade de pertencer a uma nação específica está apenas enganando a si mesmo. Ele pode negar a significância de seu nascimento, mas o mundo sabe quem ele é pela língua que ele fala, por seu sotaque e seus costumes. Se alguma força estrangeira decidir varrer sua tribo da face da Terra, sua atitude de rejeição à identidade tribal não necessariamente salvará a sua pele.

Agrupamentos políticos são necessários à autodefesa. O historiador grego Tucídides certa vez observou que “os gregos, em tempos idos...tornaram-se ladrões e iam ao estrangeiro sob o comando de seus mais fortes homens...e caindo sobre cidades não fortificadas, saqueavam-nas, fazendo disso seu melhor meio de vida...” Contrariamente às afirmações dos teóricos libertários extremados, a anarquia não é um estado abençoado. “Pois outrora ficaram habituados a perambular armados pela Grécia”, escreveu Tucídides, “e porque suas casas não tinham cercas e viajar era inseguro, acostumaram-se ao uso de armaduras”. Aqui encontramos “a guerra de todos contra todos” descrita por Thomas Hobbes. Sob estas circunstâncias, escreveu Hobbes, a vida é “torpe, pobre, animalesca e curta”.

Se piratas e bandidos se unem, é apenas natural que o resto da humanidade se una para dar um fim à pirataria e ao banditismo. “Todo estado é uma associação”, notava Aristóteles, “e toda associação é formada em vista de algum bom propósito”. Uma associação política origina-se de causas naturais. Homem e mulher formam uma associação chamada “família” a fim de que a raça humana continue e se multiplique. Aristóteles diz que isso “não é uma questão de escolha”, mas que se deve ao “nosso ímpeto natural... para propagar a própria espécie”. Famílias normalmente pertencem a uma vila, clã ou tribo. E nisto encontramos a associação entre governante e governado, essencial “para o propósito de preservação”. Uma sociedade é naturalmente hierárquica, diz Aristóteles. É necessário que haja líderes que determinem as regras e mantenham a ordem. Deve haver os founding fathers, por assim dizer, e “pais conscritos” – tal como os antigos romanos chamavam seus senadores. Estes organizavam a defesa da comunidade.

Em todas as sociedades antigas encontramos o título “pai” no centro da autoridade política – no centro do estado. Mesmo hoje falamos de nossos “Founding Fathers”. Dizemos que George Washington foi o “pai” de seu país. A palavra “patriota” é derivada da palavra latina para pai. Os reis de antigamente eram tratados por “sire”, que significa paternidade. O primeiro conceito de hierarquia política é demonstravelmente derivado do temível conceito de patriarcado. Ele está intimamente ligado à família, ao crescimento da população e aos requisitos à prosperidade. Não é uma questão de concordar ou de discordar com este ordenamento das coisas. Isto é simplesmente como as coisas se deram; é a maneira pela qual a história se desenrolou “naturalmente”. Poder-se-ia dizer que a política deriva da sexualidade – do impulso sexual masculino para dominar (observável em outros mamíferos, especialmente nos “machos alfa”).

Isto nos leva a tocar a lei de ferro da oligarquia, na medida em que organização implica oligarquia. Uma comunidade desorganizada não é páreo para uma sociedade organizada. Se um cidadão pretende exercer os seus “direitos”, precisa estar a salvo de inimigos. Todos os nossos conceitos de liberdade compreendem a existência de oligarquia – quer gostemos disso ou não. Não podemos desfrutar de proteção sem organização. Não podemos ter organização sem hierarquia. Todo mundo não pode ser o chefe. Apenas uns poucos estão de fato no comando das obrigações. Poder e mando de poucos é, por definição, oligarquia. Liberdade política nunca é liberdade absoluta. É uma liberdade dentro de um conjunto estreito e aceito de regras, na esperança de que essa regras envolvam um sistema de pesos e contrapesos.

O estado é uma associação para a preservação da sociedade. Surge naturalmente e é construído de acordo com noções de ordem e hierarquia. Mas também há perigo no estado. Sendo natural (tal como uma maçã), o estado pode apodrecer, pode enfraquecer-se. A desordem pode rastejar até aos seu mais íntimos recônditos. Ele pode falhar na defesa da sociedade. Pode até tornar-se o instrumento de uma gangue criminosa (e.g., Rússia). O estado pode cair nas mãos de tolos, incompetentes ou de fracos de caráter. A despeito da possibilidade de infortúnio, o estado é, não obstante, necessário tanto quanto é natural. A necessidade de defesa está sempre presente. Se o estado falhar em defender a sociedade ou se tornar-se o instrumento de tendências inaturais ao corpo político, a sociedade sofrerá conformemente.

A grande estratégia é o mais alto ponto de vista do estado. É o cerne intelectual da função de estado e deriva da perspectiva especial da defesa nacional contra inimigos estrangeiros. Um estado pode viver ou morrer em função das decisões que dizem respeito a armamento, prontidão para a guerra e estratégia. Numa era de armas de destruição em massa seria impensável que um grande país como os Estados Unidos pudesse ser varrido do mapa. Mas a época em que vivemos e a tecnologia que foi desenvolvida nos dizem que tal desenlace é perfeitamente possível. A sobrevivência de cada indivíduo e a sobrevivência da nação dependem do cultivo do pensamento estratégico. Uma vez que os Estados Unidos são uma “democracia” na qual os líderes são eleitos, o público votante deveria saber o suficiente de geografia, história, assuntos internacionais e militares para que pudesse fazer uma escolha inteligente nas urnas. O que temos diante de nós, todavia, é um desinteresse geral sobre tais questões, assim como ignorância. Curiosamente, o país como um todo é tomado por questões políticas que dizem respeito a “estilos de vida” e consumo. “É a economia, estúpido” foi um slogan político de sucesso anos atrás. Este é um sinal alarmante e não algo a ser aprovado.

Ao discutir temas que vão das “mulheres em combate” ao casamento homossexual e aborto, fica esquecida a perspectiva da grande estratégia. Por exemplo, como é que o feminismo afeta as perspectivas de longo prazo para a sobrevivência nacional? Será que a anistia a milhões de imigrantes ilegais facilita a coesão nacional ou encoraja a balcanização e a desintegração nacional? O comércio com a China está de fato armando um futuro inimigo tanto quanto erode as indústrias e aptidões nacionais? Descobrimos nessas questões um debate negligenciado, que tem mais a ver com o futuro de nossos netos do que com nossas conveniências imediatas. É um debate com o qual nem nos preocupamos em levar adiante. Tudo e todas as pessoas hoje parecem estar a favor da conveniência imediata. Toda política adotada por um estado tem impacto de curto e longo prazos sobre a capacidade de defender a sociedade de seus inimigos – e sobre a habilidade da sociedade de resistir aos inimigos, tanto externos quanto domésticos. Nós nos esquecemos disso. Esquecemos do primado da sobrevivência nacional. Usamos o estado para satisfazer nossos desejos, quando os desejos são da conta do indivíduo. Ao que parece, o estado é usado para todo propósito, enquanto a defesa nacional e os militares são depreciados e aviltados como instrumentos do imperialismo.

O homem é um animal político porque busca segurança na associação e o estado é assim formado. A segurança é mais bem obtida através da boa estratégia e boa estratégia significa a harmonização de vários elementos para um fim. Desde que somos uma sociedade, não somos livres para destruir a obra de nossos ancestrais ou condenar nossos netos à penúria. Há coisas tais como “dever” e também “decência”. Isto também foi esquecido.



terça-feira, 17 de junho de 2008

O pensamento de Kuhn

Thomas S. Kuhn ocupou-se principalmente do estudo da história da ciência, no qual mostra um contraste entre duas concepções da ciência:
Por um lado, a ciência é entendida como uma atividade completamente racional e controlada. (PERSPECTIVA FORMALISTA).
Em outro lado, a ciência é entendida como uma atividade concreta que se dá ao longo do tempo e que em cada época histórica apresenta peculiaridades e características proprias. (PERSPECTIVA HISTORICISTA).
Este contraste emerge na obra A Estrutura das Revoluções Científicas, e ocasionou o chamado giro histórico-sociológico da ciência, uma revolução na reflexão acerca da ciência ao considerar próprios da ciência os aspectos históricos e sociológicos que rodeiam a atividade científica, e não só os lógicos e empíricos, como defendia o modelo formalista, o qual estava a ser desafiado pelo enfoque historicista de Kuhn.
Enfoque historicista
Segundo o enfoque historicista de Kuhn, a ciência desenvolve-se segundo determinadas fases:
Estabelecimento de um paradigma.
Ciência normal.
Crise.
Revolução científica.
Estabelecimento de um novo paradigma.
A noção de paradigma resulta fundamental neste enfoque historicista e não é mais que uma macroteoria, um marco ou perspectiva que se aceita de forma geral por toda a comunidade científica (conjunto de cientistas que compartilham um mesmo paradigma e realizam a mesma atividade científica) e a partir do qual se realiza a atividade científica, cujo objetivo é esclarecer as possíveis falhas do paradigma ou extrair todas as suas consequências.
A ciência normal é o período durante o qual se desenvolve uma atividade científica baseada num paradigma. Esta fase ocupa a maior parte da comunidade científica, consistindo em trabalhar para mostrar ou pôr a prova a solidez do paradigma no qual se baseia.
Porém, em determinadas ocasiões, o paradigma não é capaz de resolver todos os problemas, que podem persistir ao longo de anos ou séculos inclusive, e neste caso o paradigma gradualmente é posto em cheque, e começa-se a considerar se é o marco mais adequado para a resolução de problemas ou se deve ser abandonado. Então é quando se estabelece uma crise, que ademais supõe a proliferação de novos paradigmas que competem entre si tratando de impor-se como o enfoque mais adequado.
Finalmente se produz um revolução científica quando um dos novos paradigmas substitui ao paradigma tradicional. A cada revolução o ciclo inicia de novo e o paradigma que foi instaurado dá origem a um novo processo de ciência normal.
Desta maneira, o enfoque historicista dá importância a fatores subjetivos que anteriormente foram passados por alto na hora de explicar o processo de investigação científica. Kuhn mostra que a ciência não é só um contraste entre teorias e realidade, senão que há diálogo, debate, tensões e até lutas entre os defensores de distintos paradigmas. E é precisamente nesse debate ou luta onde se demostra que os cientistas não são só absolutamente racionais, não podem ser objetivos, pois nem a eles é possível afastar-se de todos os paradigmas e compará-los de forma objetiva, senão que sempre estão imersos em um paradigma e interpretam o mundo conforme o mesmo. Isto demostra que na atividade científica influi tanto interesses científicos (ex: a aplicação prática de uma teoria), como subjetivos, como por exemplo, a existência de coletividades ou grupos sociais a favor ou contra uma teoria concreta, ou a existência de problemas éticos, de tal maneira que a atividade científica vê-se influenciada pelo contexto histórico-sociológico em que se desenvolve. Também é verdade que, epistemologicamente falando, Thomas Kuhn se guia por um paradigma para estudar a formação dos paradigmas!

A filosofia de Popper

Popper cunhou o termo "Racionalismo Crítico" para descrever a sua filosofia. Esta designação é significante e é um indício da sua rejeição do empirismo clássico e do observacionalismo-inductivista da ciência, que disso resulta. Apesar disso, alguns académicos, incluindo Ernest Gellner, defendem que Popper, não obstante não se ter visto como um positivista, se encontra claramente mais próximo desta via do que da tradição metafísica ou dedutiva.
Popper argumentou que a teoria científica será sempre conjectural e provisória. Não é possível confirmar a veracidade de uma teoria pela simples constatação de que os resultados de uma previsão efectuada com base naquela teoria se verificaram. Essa teoria deverá gozar apenas do estatuto de uma teoria não (ou ainda não) contrariada pelos factos.
O que a experiência e as observações do mundo real podem e devem tentar fazer é encontrar provas da falsidade daquela teoria. Este processo de confronto da teoria com as observações poderá provar a falsidade (falsify) da teoria em análise. Nesse caso há que eliminar essa teoria que se provou falsa e procurar uma outra teoria para explicar o fenómeno em análise. (Ver Falseabilidade).
Alguns consideram este aspecto fulcral para a definição da ciência. Chegando a afirmar que "científico" é apenas aquilo que se sujeita a este confronto com os factos. Ou seja: afirmam que só é científica aquela teoria que possa ser falseável (refutável). Existem críticas contundentes quanto a esse aspecto. Essas remanescem no bojo da própria Filosofia que Popper propõe. E por que? Ao afirmar que toda e qualquer teoria deve ser falseável, isso se aplica à própria teoria da falseabilidade popperiana. Portanto, a falseabilidade deve ser falseável em si mesma. Diante dessa evidente necessidade - sob a pena de sua teoria ser não-universal e portanto derrogada pela sua imprecisão - poderá existir proposições, em que a falseabilidade não é aplicável (vide teorema da incompletude de Kurt Gödel). Nos dias de hoje, verifica-se que o falsificacionismo popperiano não é princípio de exclusão, mas tão somente de atribuição de graus de confiança ao objeto passível do crivo científico.
Para Popper a verdade é inalcançável, todavia devemos nos aproximar dela por tentativas. O estado actual da ciência é sempre provisório. Ao encontrarmos uma teoria ainda não refutada pelos factos e pelas observações, devemos nos perguntar, será que é mesmo assim ? Ou será que posso demonstrar que ela é falsa ? Einstein é o melhor exemplo de um cientista que rompeu com as teorias da física estabelecidas.
Popper debruçou-se intensamente com a teoria Marxista e com a filosofia que lhe é subjacente, de Hegel, retirando-lhes qualquer estatuto científico. O mesmo em relação à psicanálise, cujas teorias subjacentes não são falseáveis (refutáveis).
O seu trabalho científico foi influenciado pelo seu estudo da teoria da relatividade de Albert Einstein.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

David Hume

David Hume (Edimburgo, 7 de Maio de 1711Edimburgo, 25 de Agosto de 1776) foi um filósofo e historiador escocês. Foi, juntamente com Adam Smith e Thomas Reid, entre outros, uma das figuras mais importantes do chamado iluminismo escocês. É visto por vezes como o terceiro e o mais radical dos chamados empiristas britânicos, depois de John Locke e George Berkeley. O destaque dado ao trio Hume, Locke, e Berkeley, apesar de tradicional, desvaloriza a influência de vários escritores francófonos tais como Pierre Bayle e Nicolas Malebranche e de outras figuras intelectuais de língua inglesa como Isaac Newton, Samuel Clarke, Francis Hutcheson, e Joseph Butler. A influente filosofia de Hume é famosa pelo seu profundo cepticismo, apesar de muitos especialistas preferirem destacar a sua componente naturalista. O estudo da sua obra tem oscilado entre aqueles que colocam ênfase no lado cepticista (tais como Reid, Greene, e os positivistas lógicos) e aqueles que enfatizam o lado naturalista (como Kemp Smith, Stroud, e Galen Strawson). Mas independente disso um dos maiores filósofos ingleses do século XX, Bertrand Russell ainda pode dizer de Hume que ele foi o maior filósofo britânico que já existiu, o que demonstra claramente a importância da obra do escritor escocês. Não se sabe, se David Hume possuía alguma crença, para alguns ele era ateu, e para outros agnostico, apesar de viver no ambiente escocês caracterizado pela igreja presbiteriana. Politicamente era um liberal do partido Whig, favorável à união entre a Escócia e a Inglaterra de 1707. Sua língua materna era o escocês (scots), falava inglês com um forte sotaque, contudo, escrevia exemplarmente nesta. Foi um dos ilustres membros da Select Society de Edimburgo. Seguindo atentamente os acontecimentos nas colónias americanas, tomou partido pela independência americana. Em 1775 ele disse a Benjamin Franklin: "eu sou um americano nos meus princípios".

Biografia
Hume nasceu em Edimburgo e frequentou a universidade local. Inicialmente, pensou em seguir a carreira jurídica mas, em suas palavras, chegou a uma "aversão intransponível a tudo, excepto ao caminho da filosofia e a aprendizagem em geral". Sua mãe, que enviuvara quando David era criança, ficou assustada com a decisão, mas Lord Kames, um familiar e protector de Hume, tranquilizou-a.
Dedicou-se aos estudos, como auto-didacta, em França, onde completou a sua obra-prima, Tratado da Natureza Humana, com apenas 26 anos. Apesar de muitos académicos considerarem hoje o Tratado sua maior obra e um dos livros mais importantes da história da filosofia, o público inglês não se entusiasmou imediatamente. Hume tinha esperado um ataque à publicação e preparava uma defesa apaixonada. Para sua surpresa, a publicação do livro passou despercebida, e sobre esta falta de reação do público, em 1739-40, escreveu: "saiu da editora morto à nascença".
Após ter concluído que o problema do Tratado era o estilo e não o conteúdo, ele encurtou o texto e deu-lhe um estilo mais ligeiro, renovou algum do material para consumo mais popular: esforço que deu existência ao Investigação Sobre o Entendimento Humano. Também não foi muito bem sucedido com o público, embora melhor do que ocorrera com o Tratado. Foi a leitura desta Investigação que teria feito Immanuel Kant - então um desconhecido professor universitário em Königsberg, já de idade avançada e sem qualquer obra relevante - afirmar que o fez acordar do seu "sono dogmático".
Em 1744 foram recusadas a Hume as cadeiras nas Universidades de Edimburgo e Glasgow, provavelmente devido a acusações de ateísmo e à oposição de um dos seus principais críticos, Thomas Reid.
Após estes insucessos, Hume trabalhou como curador de um doente psiquiátrico e posteriormente como secretário de um General.
No entanto, para além dos seus trabalhos no âmbito da filosofia, Hume ascendeu à fama literária como ensaísta e historiador, com seu célebre História da Inglaterra.
Hume viveu a última década da sua vida em Edimburgo, no novo aldeamento de New Town.

O legado de Hume
O pensamento de Hume possui ainda relevância extraordinária na filosofia atual, com imensa influência. Eis algumas das suas principais contribuições para a filosofia:

O problema da causalidade
Quando um evento provoca um outro evento, a maioria das pessoas pensa que estamos conscientes de uma conexão entre os dois que faz com que o segundo siga o primeiro.
Hume questionou esta crença, notando que se é óbvio que nos apercebemos de dois eventos, não temos necessariamente de aperceber uma conexão entre os dois. E como havemos nós de nos aperceber desta misteriosa conexão senão através da nossa percepção ?
Hume negou que possamos fazer qualquer idéia de causalidade que não através do seguinte: Quando vemos que dois eventos sempre ocorrem conjuntamente, tendemos a criar uma expectativa de que quando o primeiro ocorre, o segundo seguirá.
Esta conjunção constante e a expectativa dela são tudo o que podemos saber da causalidade, e tudo o que a nossa ideia de causalidade pode inferir. Uma tal conceptualização rouba à causalidade a sua força e alguns Humeanos posteriores, como Bertrand Russell, desmentiram a noção de causalidade no geral como algo de parecido com a superstição.
Mas isto é uma violação do senso-comum. O problema da causalidade: O que justifica a nossa crença numa conexão causal? Que tipo de conexão podemos perceber? É um problema que não tem solução unânime. A perspectiva de Hume parece ser que nós temos uma crença na causalidade semelhante a um instinto, que se baseia no desenvolvimento dos hábitos na nossa mente. Uma crença que não pode ser eliminada mas que também não pode ser provada verdadeira por nenhum argumento, dedutivo ou indutivo, tal como na questão da nossa crença na realidade do mundo exterior.

O problema da indução
Todos nós cremos que o passado é um guia confiável para o futuro. Por exemplo: as leis da física descrevem como as órbitas celestes funcionam para a descrição do comportamento planetário até aos dias de hoje. Desse modo presumimos que vão funcionar para a descrição no futuro também. Mas como podemos justificar esta presunção, o princípio da indução?
Hume sugeriu duas justificações possíveis e rejeitou ambas. O problema permaneceria em aberto, até que Karl Popper o solucionou. A primeira justificativa avançada por Hume é que por razões de necessidade lógica, o futuro tem de ser semelhante ao passado. Porém, Hume nota que podemos conceber um mundo errático e caótico onde o futuro não tem nada que ver com o passado ou então, mais submissamente, um mundo tal como o nosso até ao presente, até que certo ponto as coisas mudam completamente.
A segunda justificação, mais modestamente, apela apenas para a segurança passada da indução: sempre funcionou assim, por isso é provável que continue a funcionar. No entanto, como Hume lembrou, esta justificação apenas usa um raciocínio circular, justificando a indução por um apelo que requer a indução para ter efeito.
O problema da indução ainda permanece. Karl Popper, como se disse, apresenta uma solução elegante e convincente, que exclui qualquer solução definitiva ou dogmática. A visão de Hume parece ser que nós (como outros animais) temos uma crença instintiva que o nosso futuro será semelhante ao passado, com base no desenvolvimento de hábitos do nosso sistema nervoso. Uma crença que não podemos eliminar mas que não podemos provar ser verdadeira por qualquer tipo de argumento, dedutivo ou indutivo, tal como é o caso com respeito à nossa crença na realidade do mundo exterior.
Para trabalho contemporâneo relevante, ver a compilação de Richard Swinburne's: "The Justification of Induction".

A Teoria Empacotada do Eu
(The Bundle Theory of the Self)
Costumamos pensar que somos a mesma pessoa que éramos 5 anos atrás. Apesar de termos mudado em muitos aspectos, a mesma pessoa está presente tal como estava presente no passado. Podemos começar a pensar sobre os aspectos que se podem alterar sem que o próprio (indivíduo) subjacente mude. Hume, no entanto, nega que exista uma distinção entre os vários aspectos de uma pessoa e o indivíduo misterioso que supostamente transporta todas estas características.
Porque no fundo, como Hume afirma, quando se começa a introspecção, notamos um grupo de pensamentos e sentimentos e percepções e tudo isso, mas nunca nos apercebemos de uma substância à qual possamos chamar "o Eu". Por isso, tanto quanto podemos dizer, conclui Hume, não há nada relativamente ao Eu que esteja acima de um grande pacote de percepções transitórias. De notar que, na perspectiva de Hume, não há nada ao qual estas percepções pertencem. Pelo contrário, Hume compara a alma ao povo de uma nação (commonwealth), que retém a sua identidade não em virtude de uma substância básica permanente, mas que é composto de muitos elementos relacionados mas em permanente mutação. A questão da identidade pessoal torna-se assim uma questão de caracterizar a coesão frouxa da experiência pessoal vivida. (Notar que no Appendix do tratado, Hume diz misteriosamente que ele estava insatisfeito com o seu julgamento do Eu, sem no entanto ter regressado a esta questão.
Para trabalho contemporâneo relevante, ver "Reasons and Persons", de Derek Parfit.

A razão prática: Instrumentalismo e Niilismo
A maioria de nós pensa que certos comportamentos são mais razoáveis do que outros. Parece haver qualquer coisa de abstruso em, por exemplo, comer uma folha de alumínio. Mas Hume negou que a razão tivesse algum papel importante em motivar ou desencorajar o comportamento. No fundo, a razão é apenas uma espécie de calculador de conceitos e experiência. O que no fundo importa, diz Hume, é como nos sentimos em relação a esse comportamento. O seu trabalho gerou a doutrina do instrumentalismo, que declara que uma ação é razoável se e somente se ela serve os objetivos e desejos do agente, quaisquer que estes sejam. A razão pode entrar neste esquema apenas como um servo, informando o agente de fatos úteis relativos às ações que servem aos seus objetivos e desejos, mas nunca condescendendo a dizer ao agente quais objetivos e desejos ele deverá ter.
Assim, se você quiser comer uma folha de alumínio, a razão lhe dirá onde encontrar uma folha de alumínio, e não haverá nada de irracional em a comer ou em o desejar. O instrumentalismo passará a ser uma visão ortodoxa da razão prática em economia, teoria das escolhas racionais e algumas outras ciências sociais. Mas alguns comentadores argumentam que Hume foi mais além do niilismo, e disse que não há nada de irracional em deliberadamente frustrar os seus próprios objetivos e desejos ("eu quero comer folha de alumínio, por isso deixa-me selar a minha boca"). Tal comportamento seria altamente irregular, tirando qualquer papel à razão, mas não seria contrário à razão, que é impotente em fazer julgamentos neste domínio.
Para trabalho contemporâneo relevante, ver "The Authority of Reason" de Jean Hampton e "Rational Choice and Moral Agency" de David Schmidtz.

Anti-realismo moral e motivação
No seu ataque ao papel da razão no julgamento do comportamento, Hume argumentou que o comportamento imoral não é imoral por ser contra a razão. Ele primeiro defendeu que as crenças morais estão intrinsicamente motivantes: se você acredita que matar é errado, você estará motivado "ipso facto" a não matar e em criticar a matança (internalismo moral). Ele lembra-nos de seguida que a razão por si só não motiva ninguém: a razão descobre os factos e a lógica, mas ela depende dos nossos desejos e preferências quanto à percepção daquelas verdades e se isso nos motiva. Consequentemente, a razão por si não produz crenças morais. Hume propôs que a moralidade depende ultimamente do sentimento, sendo o papel da razão apenas o de preparar o caminho para os nossos sensíveis julgamentos por análise da matéria moral em questão.
Este argumento contra os fundamentos da moralidade na razão é hoje um dos argumentos pertencentes ao arsenal do anti-realismo moral; o filósofo Humeano John Mackie argumentou que para os factos morais serem factos reais sobre o mundo e ao mesmo tempo, intrinsicamente motivantes, eles teriam de ser factos muito estranhos. Temos pois todos os motivos para desacreditá-los.
Para trabalho contemporâneo relevante, ver: Inventing Right and Wrong, de J.L. Mackie; "Hume's Moral Theory", de Mackie; "Moral Realism and the Foundation of Ethics" de David Brink e "The Moral Problem" de Michael Smith.Viva a Ganza.

Livre-arbítrio vs. indeterminismo
(Free Will vs. Indeterminism)
Todos nós já notamos o aparente conflito entre o livre-arbítrio e o determinismo: se as nossas acções foram determinadas há milhões de anos atrás, como poderá ser que elas dependem de nós? Mas Hume notou um outro conflito, que torna o problema da livre vontade num denso dilema: a livre-vontade é incompatível com o indeterminismo. Imagine que as suas acções não são determinadas pelos eventos precedentes. Nesse caso, as suas acções serão completamente aleatórias. Em adição, e muito importante para Hume, as ações não são determinadas pelo seu carácter, as suas preferências, os seus valores, etc. Como é que alguém pode ser tido por responsável pelo seu carácter? A livre-vontade parece requerer o determinismo, porque senão o agente e a acção não estariam conectados do modo necessário por acções livremente escolhidas.
Sendo assim, quase todos nós acreditamos no lívre-arbítrio, a livre vontade parece inconsistente com o determinismo, mas a livre-vontade parece requerer o determinismo.
Na visão de Hume, o comportamento humano, como tudo o mais, é causado (causal). Por isso mesmo, se tomamos as pessoas como responsáveis pelas seus atos, devemos focar a recompensa ou a punição de forma a que eles façam aquilo que é moralmente desejável e evitem aquilo que é moralmente repreensível.

Razão e sentimento
Segundo Hume, a razão não é antagônica aos sentimentos do qual as duas são intimamente ligadas por assoçiações.De tal maneira que a primeira ligados por assoçiações de causa e efeito só se tomam sentido quanto estes é ligado pelas paixões.

O problema do ser - dever ser
(The Is-Ought Problem)
Hume notou que muitos escritores falam do que deve ser, na base de enunciados acerca do que é. Mas parece haver uma grande diferença entre enunciados descritivos (o que é) e enunciados prescritivos (o que deveria ser). Hume apela aos escritores que tomem muito cuidado na mudança do enunciado de um estado para o outro. Nunca sem se dar uma explicação de como o enunciado- "deve ser" é suposto seguir ao enunciado- "é". Mas como exactamente é que se pode derivar o "deve" de um "é" ? Essa questão, colocada num pequeno parágrafo de Hume, tornou-se uma das questões centrais da teoria da ética e costuma ser atribuída a Hume a opinião de que tal derivação é impossível. (Outros interpretam Hume como dizendo que não se pode ir de uma constatação factual a um enunciado ético, mas que se o pode fazer sem atender à natureza humana, isto é, sem prestar atenção aos sentimentos humanos).
G.E: Moore defendeu uma posição similar com a seu "argumento da questão aberta", que pretendia refutar qualquer identificação de propriedades morais com propriedades naturais: a chamada "falácia naturalista". Qualquer teórico ético que pretender dar à moralidade um fundamento objectivo em aspectos mais mundanos da vida real está a lutar por uma causa controversa, no mínimo.

Utilitarismo
Foi provavelmente Hume quem, juntamente com os seus colegas do Iluminismo escocês, avançou pela primeira vez a ideia de que a explicação dos princípios morais deverá ser procurada na utilidade que eles tendem a promover. O papel de Hume não deverá ser descrito com exagero, claro; foi o seu compatriota Francis Hutcheson que cunhou o slogan utilitarista "a maior felicidade para o maior número". Mas foi através da leitura do "Tratado" de Hume que Jeremy Bentham sentiu pela primeira vez a força do sistema utilitário: ele "sentiu como se escamas tivessem caído dos seus olhos". No entanto, o "proto-utilitarismo" de Hume é muito peculiar, da nossa perspectiva. Ele não pensa que a agregação de unidades cardinais de utilidade será a fórmula para atingir a verdade moral.
Pelo contrário, Hume era um sentimentalista moral e, como tal, achava que princípios morais não podem ser justificados intelectualmente. Alguns princípios simplesmente são-nos apelativos e outros não o são. E a razão porque princípios utilitaristas da moral são apelativos é que eles promovem os nossos interesses e os dos nossos companheiros com os quais simpatizamos.
Os humanos são pouco flexíveis a aprovar coisas que ajudam a sociedade-utilidade pública. Hume usou este dado para explicar como ele avaliava um vasto campo de fenómenos, desde instituições sociais e políticas governamentais até traços de carácter e talentos..

O problema dos milagres
Uma forma de apoiar a religião é por apelo a milagres. Mas Hume argumentou que no mínimo, os milagres não poderiam conferir muito apoio à religião. Há vários argumentos sugeridos pelo ensaio de Hume, todos eles à volta do seu conceito de milagre: nomeadamente a violação por Deus das leis da Natureza. Um argumento é o de que é impossível violar as leis da Natureza. Outro argumento afirma que o testemunho humano nunca poderia ser suficientemente fiável para contra-ordenar a evidência que temos das leis da Natureza. Outro argumento, menos irredutível, mais defensável, é que devido à forte evidência que temos das leis da natureza, qualquer pretensão de milagre está sobre pressão desde o início e precisa de provas fortes para derrotar as nossas expectativas iniciais. Este ponto tem sido aplicado sobretudo na questão da ressurreição de Jesus, onde Hume sem dúvida perguntaria "o que é que é mais provável ? que um homem se erga dos mortos ou que este testemunho esteja incorrecto de uma forma ou de outra ?". Ou mais suavemente, "o que é mais provável ? que o Uri Geller pode realmente fazer dobrar colheres com a sua mente ou que isso seja algum tipo de truque ?". Este argumento é a base do movimento céptico e um assunto fundamental aos históricos da religião.
Para uma análise crítica e técnica (Bayesiana) de Hume, ver "Hume's Abject Failure" de John Earman — o título é sugestivo

O argumento teleológico
Um dos argumentos mais antigos e populares para a existência de Deus é o argumento teleológico - que toda a ordem e "objectivo" do mundo evidencia uma origem divina. Hume usou o criticismo clássico do argumento teleológico, e apesar do assunto estar longe de estar esgotado, muitos estão convencidos de que Hume resolveu a questão definitivamente. Um século antes de Darwin! Aqui alguns dos seus pontos:
Para o argumento teleológico funcionar, seria necessário que só nos pudessemos aperceber de ordem quando essa ordem resulta do desígnio (criação). Mas nós vemos "ordem" constantemente, resultante de processos presumivelmente sem consciência, como a geração e a vegetação. O desígnio (criação) diz apenas respeito a uma pequena parte da nossa experiência de "ordem" e "objectivo".
O argumento do desígnio, mesmo que funcionasse, não poderia suportar uma robusta fé em Deus. Tudo o que se pode esperar é a conclusão de que a configuração do universo é o resultado de algum agente (ou agentes) moralmente ambíguo, possivelmente não inteligente, cujos métodos possuam alguma semelhança com a criação humana.
Pelos próprios princípios do argumento teleológico, a ordem mental de Deus e a funcionalidade necessitam de explicação. Senão, podemos considerar a ordem do universo, etc, inexplicada.
Muitas vezes, o que parece ser objectivo, onde parece que o objecto X tem o aspecto A por forma a assegurar o fim F, é melhor explicado pelo processo da filtragem: ou seja, o objecto X não existiria se não possuisse o aspecto A, e o fim F é apenas interessante para nós. Uma projecção humana de objectivos na natureza. Esta explicação mecânica da teleologia antecipou a selecção natural.
Para trabalho contemporâneo relevante, ver "Hume's Philosophy of Religion" de J.C.A. Gaskin e "The Existence of God" de Richard Swinburne. Para uma perspectiva de um filósofo da biologia, ver "Philosophy of Biology" de Elliot Sober.

Sociologia da Religião de Hume
David Hume ficou conhecido sobretudo pelas suas contribuições na filosofia. Mas não menos dignas de destaque são as suas observações na análise da religião. Pode falar-se de ideias pioneiras para a sociologia da religião, que ficam patentes na obra de 1757, The Natural History of Religion.

Teoria da Oscilação
Hume rejeita a ideia de uma evolução linear desde o politeísmo para o monoteísmo como um sumário da evolução histórica dos últimos 2.000 anos.
Na verdade, Hume acredita que o que a história mostra é antes um oscilar irracional entre politeísmo e monoteísmo. Chama-lhe um "flux and reflux" (oscilar) entre as duas opções. Nas palavras de Hume: "a mente humana mostra uma tendência maravilhosa para oscilar entre diferentes tipos de religião: eleva-se do politeísmo para o monoteísmo para voltar a afundar-se na idolatria"
Como Gellner afirma, esta oscilação não é o resultado de qualquer racionalidade, mas sim com os "mecanismos do medo, incerteza, da superioridade e inferioridade".

Do politeísmo para o monoteísmo
Os povos que adoram vários deuses com poderes limitados podem facilmente conceber um Deus com um poder mais extenso, ainda mais digno de veneração do que os outros. "Neste processo, os homens chegam ao estágio de um só Deus como ser infinito, a partir do qual nenhum progresso é possível".

Do monoteísmo para o politeísmo
Esse Deus único, todo poderoso, é porém igualmente um Deus distante e de difícil acesso para o comum dos mortais (sobretudo se estes são analfabetos - e na Europa da Idade Média, a esmagadora maioria da população era analfabeta). O contacto directo com as escrituras sagradas na Idade Média permanecia um privilégio de uma casta limitada - o clero. A maioria do povo comum, analfabeto, sente-se impossibilitado de aceder a Deus por via "directa". Neste momento, torna-se visível um princípio psicológico que caminha numa direcção contrária.
Esse princípio psicológico é a ideia de que os homens vivem em busca da protecção, do apoio. Torna-se necessária a figura de intermediários perante o comum dos mortais e o Deus todo poderoso. Uma função para os santos, relíquias, ... "Estes semi-deuses e intermediários, que são vistos pelos homens como parentes e lhes parecem menos distantes, são objecto da adoração e assim, a idolatria está de volta..."

Novamente de regresso ao monoteísmo
Mas mais uma vez, o pêndulo tem de retornar. Como Gellner afirma, em breve, "o Panteão torna a encher-se". Hume: "À medida que estas diferentes formas de idolatria dia por dia descem às formas cada vez mais baixas e ordinárias, acabam por se auto-destruir e as horríveis formas de idolatria vão acabar por provocar um retorno e um desejo de regresso ao monoteísmo... Por isso (entre os judeus e os muçulmanos) é que há proibição de figuras humanas na pintura e mesmo na escultura, porque eles receiam que a carne seja fraca e que acabe por se deixar levar para a idolatria".
Hume mostra exemplos desta evolução: É a luta de Jeová contra os Bealim de Canaã, da Reforma contra o Papado, e do Islão contra as suas tendências pluralistas (ver sufismo).

Influência de Hume na constituição estadunidense
Como Douglass Adair sugeriu, o livro de David Hume, "Essays, Moral, Political and Literary" terá influênciado directamente James Madison na formulação da Constituição Americana. No ensaio ali contido "Idea of a Perfect Commonwealth" Hume refuta a ideia de Montesquieu de que uma grande nação está condenada a ser corrupta e ingovernável. Pelo contrário, afirma Hume, uma nação extensa pode ser, devido à sua diversidade geográfica e socio-económica, bem mais estável do que nações pequenas. Hume escreve: "Apesar de as pessoas como um orgão serem incapazes de governar, caso elas se dispersarem em pequenas unidades (tais como colónias individuais ou estados) elas são mais susceptíveis de se submeter à razão e à ordem; a força das correntes populares (populismo) e marés é, em grande medida, quebrada". A elite conspiradora necessitará de passar mais tempo a coordenar os movimentos das várias partes do todo, do que a planear o derrube. "Ao mesmo tempo, as partes estão tão distantes e remotas que é muito difícil, seja por intriga ou paixão, levá-las a tomar medidas contra o interesse público." James Madison, que estudara em Princeton, e ali tinha tomado contacto com a obra de Hume, incorporou esta visão no seu "Notes on the Confederacy", publicado em Abril de 1787, 8 meses antes dele ter escrito o ensaio defendendo a Constituição, como parte dos "Federalist Papers".

John Locke

John Locke (29 de Agosto, 163228 de Outubro, 1704) foi um filósofo inglês.
Estudou medicina, ciências naturais e filosofia em Oxford, principalmente as obras de Bacon e Descartes. Participou da Revolução Inglesa, em 1688. Passa vários anos na França e na Holanda. Voltou à Inglaterra quando Guilherme de Orange subiu ao trono. Pai do Liberalismo e do individualismo liberal; a principal obra, Ensaio sobre o entendimento humano (1690), propõe que a experiência é a fonte do conhecimento, que depois se desenvolve por esforço da razão.
É considerado o representante principal do empirismo naquele país, e ideólogo do liberalismo. É predecessor do Iluminismo. A filosofia política de Locke fundamenta-se na noção de governo consentido dos governados diante da autoridade constituída e o respeito ao direito natural do ser humano, de vida, liberdade e propriedade. Influencia, portanto, as modernas revoluções liberais: Revolução Inglesa, Revolução Americana e na fase inicial da Revolução Francesa, oferecendo-lhes uma justificação da revolução e a forma de um novo governo. Para fins didáticos, Locke costuma ser classificado entre os "Empiristas Britânicos", ao lado de David Hume e George Berkeley, principalmente pela obra relativa à questões epistemológicas. Em ciência política, costuma ser classificado na escola do direito natural ou jusnaturalismo.
John Locke fugiu para Holanda, onde conheceu Fele de Barbosa, um grande capitalista muito influente entre as indústrias de tabaco, onde testava todos os cigarros novos. Fele de Barbosa também foi um filósofo que influenciou a política. Depois da Holanda, Locke se dirigiu à França, onde participou idiretamente da Revolução Francesa, que, assim como a Inglesa, fundamentava-se princípios e ideais iluministas.
Dentre os escritos políticos, a obra mais influente foi o tratado em duas partes, Sobre o governo civil. A primeira descreve a condição corrente do governo civil; a segunda parte descreve a justificação para o governo e os ideais necessários à viabilização. Segundo Locke todos são iguais e que a cada deverá ser permitido agir livremente desde que não prejudique nenhum outro. Com este fundamento deu continuidade à justificação clássica da propriedade privada ao declarar que o mundo natural é a propriedade comum de todos, mas que qualquer indivíduo pode apropriar-se de uma parte dele ao misturar o trabalho com os recursos naturais.
Este tratado também introduziu o "proviso de Locke", no qual afirmava que o direito de tomar bens da área pública é limitado pela consideração de que "ainda havia suficientes, e tão bons; e mais dos ainda não fornecidos podem servir", por outras palavras, que o indivíduo não pode simplesmente tomar aquilo que pretende, também tem de tomar em consideração o bem comum.
Locke é considerado o protagonista do empirismo, isto é, a teoria denominada de "Tabula rasa" (ardósia em branco). Esta teoria afirma que todas as pessoas nascem sem saber absolutamente nada e que aprendem pela experiência, pela tentativa e erro. Esta é considerada a fundação do "behaviorismo".
Para Bernard Cottret, biógrafo de João Calvino, a braços com a história trágica da brutal repressão aos protestantes em França no século XVI, e a própria intolerância e zelo religioso radical de João Calvino em Genebra, o nome de John Locke está intimamente associado à tolerância. Uma tolerância que os franceses aprendem a valorizar apenas na década de 80 do século XVII, quase às portas do Iluminismo. Como Voltaire afirmou, a tolerância é para os franceses um artigo de importação. Bernard Cottret afirma: "a tolerância é o produto de um espaço geográfico específico, nomeadamente o noroeste da Europa. Ou seja: a Inglaterra e a Holanda. E ela é no final em especial a obra de um homem - John Locke - a quem o século XVII dedica um culto permanente".
As obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As fontes principais do pensamento de Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro era a Oxford; o empirismo inglês da época; o racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.


Magistrado Civil

É dever do magistrado civil, determinando imparcialmente leis uniformes, preservar a assegurar para o povo em geral e para cada súdito em particular a posse justa dessas coisas que pertencem a esta vida. Se alguém pretende violar tais leis, opondo-se à justiça e ao direito, tal pretensão deve ser reprimida pelo medo do castigo, que consiste na privação ou diminuição dos bens civis que de outro modo podia e devia usufruir. Mas vendo que ninguém se permite voluntariamente ser despojado de qualquer parte de seus bens, muito menos a sua liberdade ou de sua vida, o magistrado reveste-se de força, ou seja, com toda a força de seus súditos, a fim de punir os que infringiram quaisquer direitos de outros homens.
Mas que toda jurisdição do magistrado diz respeito somente a esses bens civis, que todo o direito e o domínio do poder civil se limita unicamente a fiscalizar e melhorar esses bens civis, e que não deve e não pode ser de modo alguns estendido à salvação das almas.

Defesa da escravidão

Locke é considerado "o último grande filósofo que procura justificar a escravidão absoluta e perpétua"[1]. Ao mesmo tempo que dizia que todos os homens são iguais, Locke defendia a escravidão negra, pois, aparentemente, ele só considerava como humanos os homens livres. Locke contribuiu para a formalização jurídica da escravidão na Província da Carolina, cuja norma constitucional dizia:
[...] todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos negros seja qual for sua opinião e religião.
Ele também investiu no tráfico de escravos negros.[2]

Idéias sobre Deus

Ali colocou o homem que formara. Então o Senhor fez nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento. E no meio do jardim estavam a árvore da vida e a árvore de conhecimento do bem e do mal.
A Lei que devia governar Adão era a mesma que tinha de governa-lhe toda a posteridade: a lei do grau da liberdade. Tal se aplica a todas as leis sob as quais um homem vive, sejam naturais ou civis. Está um homem sob a lei da natureza? O que o liberta dessa lei? A própria liberdade.
Mas se, em virtude de defeitos que podem ocorrer no curso ordinário da natureza, uma pessoa qualquer atinge o grau da razão. O que importa simplesmente no dever que Deus e a natureza impuseram ao homem é preservar a honra e a dignidade.

terça-feira, 10 de junho de 2008

A educação domiciliar.

Direito ou desvio?A educação domiciliar, que começa a ganhar corpo entre famílias brasileiras, tem como inspiração práticas comuns nos Estados Unidos. Na interpretação de especialistas, a Constituição Federal não permite sua adoção no Brasil

A escola não faz parte da rotina do menino Lucas, 9 anos, e de sua irmã Júlia, 8. As crianças, moradoras de Maringá, noroeste paranaense, deixaram de freqüentar o ensino regular há cerca de um ano para estudar em casa, onde recebem aulas de catecismo, língua portuguesa, geografia e ciências. O pai, Luiz Carlos Faria da Silva, pensava em recorrer à Justiça para ratificar o direito ao ensino domiciliar, já que está decidido a afastar os filhos da escola formal, "um caminho deletério de corrupção moral e intelectual". Agora, amadurece a idéia de deixar o ônus de uma atitude a terceiros, para que possa manter os filhos longe da escola e, ao lado da esposa, continuar a cuidar de sua instrução, sem despertar os representantes do Estado para que requeiram a matrícula de ambos no ensino regular.
Faria da Silva teme enfrentar complicações com a Justiça, como aconteceu com a família Nunes, no interior de Minas Gerais. Moradores de Timóteo, a 216 km de Belo Horizonte, o casal Cléber de Andrade Nunes e Bernardeth Nunes protagoniza o mais novo capítulo do embate que, de tempos em tempos, confronta a Justiça e os adeptos do homeschooling, o ensino domiciliar. Desde o ano passado, os Nunes respondem a dois processos - um criminal, por abandono intelectual; outro cível, por infringir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que já resultou em uma condenação. O casal recorreu e a briga promete se arrastar na Justiça. Enquanto isso, os filhos Davi, 15 anos, e Jônatas, 14, recebem aulas em casa. Há mais de dois anos não vão à escola.
Os pais reclamam a liberdade de escolher; o Estado, o dever de assegurar a educação dos menores e fazer valer os preceitos constitucionais.
"Queremos garantir o direito de educar e instruir nossos filhos", diz Faria da Silva, doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Não aceitamos que o Estado passe por cima da família e decida como educar nossos filhos, inclusive, confrontando os princípios e os fundamentos da moral na qual os educamos", argumenta.
Soa óbvio que lugar de criança é na escola, mas há famílias que se ancoram em convicções morais, religiosas e, principalmente, no fracasso do sistema oficial de ensino, para pleitear o direito de ensinar em casa. Casos como os da família Nunes e da família Silva não são isolados. É de se prever outros tantos Brasil afora, a maior parte na clandestinidade.
No bairro de Santo Antônio, em Chapecó/SC, um casal de missionários repete os mesmos argumentos e inicia em casa a instrução do filho mais velho, sem intenção alguma de integrá-lo ao ensino regular. A experiên­cia é descrita no estudo acadêmico Educação domiciliar: uma visão geral do homeschooling no Brasil, desenvolvido por Fábio Stopa Schebella e apresentado à Universidade Comunitária Regional de Chapecó.
Schebella registra que o pai da família pesquisada também recebeu instrução em casa, equivalente ao ensino médio. É nascido nos Estados Unidos, embora tenha vivido boa parte do tempo no Brasil, em especial no Rio Grande do Sul, nas cidades de Nonoai, Gramados dos Loureiros e na área indígena de Bananeiras, onde sua família, também missionária, realizou trabalho de caráter religioso entre os índios kaingang. É descrito pelo pesquisador como bacharel em missiologia (estudo sobre a missão de uma determinada igreja), título conquistado em um seminário não especificado, que não requer comprovação de escolarização prévia.
O estudo analisa ainda "outros sujeitos de Chapecó e região que foram instruídos por meio do ensino em casa", e aponta que também tiveram em sua formação forte influência do modelo norte-americano. "Como se percebe, o único empecilho decorrente do homeschooling para as pessoas pesquisadas se restringe à falta de certificação por parte do Estado brasileiro", conclui Schebella.
Além desses casos, há aqueles em que pais de crianças com necessidades especiais, por exemplo, ao sentir que seus filhos não são adequadamente atendidos por professores que, na maioria das vezes, não têm preparo específico para lidar com suas deficiências, preferem eles próprios assumir a tarefa.
Direito ou arbítrioMas, afinal, os pais são mesmo obrigados a matricular os filhos na escola ou têm a opção de eles próprios serem os responsáveis pela educação e instrução dos menores? "Não é reconhecida essa possibilidade de os próprios pais ensinarem os filhos em casa. O que a lei quer é a matrícula no ensino formal", sustenta Murilo Digiácomo, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente do Paraná, para quem o Estado tem o dever de intervir nas situações em que a criança ou o adolescente estão fora da escola. Para o representante do Ministério Público do Paraná, os pais infringiram princípios constitucionais, contrariaram o Código Penal, feriram o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96).
O debate é recorrente. Há aqueles que defendem com veemência a idéia do ensino domiciliar e outros tantos, ainda em maior número, rechaçam a proposta.
A família Nunes, de Timóteo, Minas Gerais: "anseio legal para a legitimação do ensino domiciliar"Em 2001, a polêmica chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde Carlos de Vilhena Coelho e Márcia Vilhena Coelho impetraram um mandado de segurança para garantir o direito de ensinar em casa os três filhos mais velhos, à época com 9, 8 e 6 anos de idade. As crianças, apesar de formalmente matriculadas no Colégio Imaculada Conceição, de Anápolis/GO, nunca haviam freqüentado regularmente a escola. Recebiam instrução em casa, dos pais, indo ao colégio apenas para a entrega de trabalhos ou para a realização de provas. Com o instrumento jurídico, Carlos e Márcia pretendiam garantir aos filhos o reconhecimento do ensino domiciliar e a emissão de um diploma quando concluíssem mais tarde o ensino fundamental.
"A família concluiu que chegou a hora de buscar o reconhecimento estatal dessa modalidade de educação", registra a petição, assinada pelo representante jurídico do casal, o ex-procurador-geral da República, Aristides Junqueira. Perderam por seis votos a dois. Seis dos oito ministros do Supremo Tribunal de Justiça não reconheceram a validade dos argumentos da defesa, que questionou o Parecer 34/2000 do Conselho Nacional de Educação, evocando a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição brasileira.
Ao atacar a visão do CNE, o pedido do mandado de segurança impetrado pelos Vilhena queixava-se de cerceamento. "(...) o Estado brasileiro deixaria de ser democrático para ser absolutista, totalitário, posto que desrespeita a liberdade de educação: ou a escola ou a escola, mas sempre a escola!". Conclui que o mesmo parecer " feriu-lhes o direito líquido e certo de, na qualidade de pais, educarem em casa seus filhos menores, afrontando, assim, os direitos humanos e as normas constitucionais brasileiras".
Lançado em 2006 nos Estados Unidos, o documentário Acampamento de Jesus (Jesus Camp, foto), candidato ao Oscar no ano passado, mostra uma comunidade religiosa em Dakota do Norte, nos Estados Unidos. No filme, uma mãe que educa o filho em casa diz: "Não vou mandar meu filho para a escola. Lá eles ensinam mentiras como aquecimento global e evolucionismo". Valorização curricularOutra base da argumentação dos Vilhena Coelho apoiava-se no desempenho escolar das crianças, seguindo um discurso amplamente difundido pelos adeptos do ensino em casa. Sem escolarização anterior, tiveram de ser avaliados antes de formalizar a matrícula, como prevê a LDB. O mais velho foi classificado na 5ª série antes de ter completado 10 anos; a menina obteve classificação na 4ª antes dos 9 anos completos, enquanto o caçula foi inscrito na 1ª série aos 6 anos, quando ainda era facultativa a matrícula no ensino regular. E, ao longo do período letivo, demonstraram aproveitamento acima da média.
"Como poderá atestar a mencionada unidade escolar, os resultados obtidos nas disciplinas tidas por obrigatórias foram bastante satisfatórios, inserindo-os entre os primeiros lugares de suas turmas", registra o instrumento jurídico.
O mesmo argumento é usado agora pela família Nunes. Para provar que não existe o abandono inte­lec­tual, conforme previsto no artigo 246 do Código Penal, os garotos Davi e Jônatas prestaram no ano passado o vestibular de Direito para uma faculdade particular, a Fadipa, em Ipatinga. Foram aprovados, respectivamente, na 7ª e 13ª colocações. O resultado do exame serve agora como peça de defesa no processo criminal que transita no 1º Tribunal de Justiça Especial de Minas Gerais.
Cléber e Bernardeth orgulham-se do desempenho dos filhos. O pai, designer gráfico, segue com os filhos os princípios do trivium (retórica, dialética e gramática) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música), que datam do século 13, além do estudo de duas línguas estrangeiras - inglês e hebraico.
Contra o ensino regular, os Nunes esbanjam argumentos. No recurso que movem na Justiça, contra a condenação em primeira instância no processo cível, lembram a "deficiência crônica" da escola brasileira e, na intenção de comprovar sua tese, recorrem ao exame promovido em 2000 pelo Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), quando o Brasil amargou o último lugar no ranking de 32 países.
A defesa dos Nunes também critica os Parâmetros Curriculares Nacionais, em particular o volume 10 (Pluralidade Cultural e Orientação Sexual), dedicado ao ensino fundamental (Ministério da Educação, Brasília, 1997), sublinhando que "(....) A bibliografia desse currículo contém livros que aprovam a masturbação, o sexo oral e anal, o incesto e o sexo antes do casamento". E, por essas e outras, pleiteiam a autorização legal para a prática do chamado homeschooling.
"Há um anseio legal para a legitimação desse método educacional", sustenta o recurso.
Consultado sobre a possibilidade de ter negado o direito ao ensino domiciliar, Cléber considera a hipótese de deixar o país. Seguiria, então, os passos do pastor evangélico Josué Jehoshua Bueno, hoje radicado no Paraguai, também praticante do ensino domiciliar.
Pai de nove filhos, Bueno e a esposa foram denunciados ao Ministério Público em maio de 2005 pela disciplina física imposta às crianças e por mantê-las completamente apartadas da escola formal, o que desencadeou uma ação civil pública. Ao final do processo, a Justiça ordenou a matrícula escolar e exigiu acompanhamento psicológico para toda a família, prevendo sérias sanções caso descumprissem a decisão.
"Ameaçados da perda da guarda de nossos filhos, não nos restou outra opção a não ser sair do país", diz Bueno, que desde criança teve contatos com missionários americanos que trabalhavam na área do rio Amazonas. Na juventude, foi para os Estados Unidos, "reforçando os contatos feitos desde a infância". "Quando o Estado se coloca como autoridade maior na educação dos filhos, ameaçando a própria integridade familiar, é sinal de que é o Estado que precisa ser reformado e destituído de poderes, e não a família".
Já a a presidente da Câmara de Educação Básica, Clélia Brandão Alvarenga Craveiro, crê que o convívio escolar tem um papel importantíssimo na vida da criança e do adolescente. "Vivemos um momento de transição, de redefinição, inclusive, de valores, mas tirar a criança e o jovem da escola não é solução. A sociedade norte-americana, onde os direitos individuais são altamente privilegiados, sofre agressões violentíssimas nas escolas. Quem sabe até que ponto os jovens, por ficarem fora da escola no período da infância, não se tornam fundamentalistas e com enorme dificuldade de conviver com as diferenças?", pergunta.
Sob Véu ComunitárioAo final da petição em defesa dos Nunes, Márcia Vilhena e seu filho mais velho figuram como testemunhas, seis anos depois de terem eles próprios protagonizado a ação no STJ. A atitude dos Vilhena Coelho parece ser marca registrada dos adeptos do ensino domiciliar. Também eles, em 2001, receberam manifestações de apoio. "Por favor, telefonem e escrevam para a embaixada brasileira com esta mensagem", apelava a HSLDA (Associação de Defesa Legal do Ensino Domiciliar, na tradução em português), introduzindo um documento que informava que "Famílias inocentes praticantes do ensino domiciliar, como a de Carlos Vilhena, estão sendo perseguidas no Brasil" (http://www.hslda.org/hs/international/Brazil/200208300.asp). O manifesto a favor do ensino domiciliar foi também dirigido, nominalmente, a cada um dos ministros do STJ.
Natural que aqueles que partilham a mesma visão queiram amparar-se mutuamente em defesa do propósito comum. No blog Escola em Casa (www.escolaemcasa.blogspot.com.br), Júlio Severo cumpre esse papel a favor do ensino domiciliar. Traz de tudo um pouco: recomenda livros didáticos, escreve artigos difundindo a prática do homeschooling e ainda se dedica à tradução e adaptação de artigos afins, extraídos de periódicos americanos. Um deles, de 2006, exortava os pais da Califórnia a "rejeitar o ambiente pró-homossexualismo das escolas públicas" para educá-los em casa, repercutindo o depoimento de Charles Lowers, diretor-executivo da organização pró-família Considering Homeschool. Para os pais interessados na prática do ensino em casa, faz um alerta via internet:
"Quando oculta de forma adequada, não há perigos, mas muitas vezes um parente, um vizinho ou um indivíduo desconhecido intervêm para delatar ao Conselho Tutelar, que tem lidado com todos os casos de educação em casa no Brasil".
Constituição Federal (1988), Título VIII, Capítulo III, seção IArt. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Constituição Federal (1988), Título VIII, Capítulo VIIDa família, da criança, do adolescente e do idosoArt. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

A importância da cultura no processo de construção da identidade da criança de ensino fundamental

Este artigo tem como objetivo apresentar aos educadores de ensino fundamental a importância da cultura no processo de construção da identidade da criança de ensino fundamental e conscientizá-lo de sua importância como protagonista/expectador deste processo.

Palavras-chave: Pluralidade cultural, cultura, educação, sociocultural.

INTRODUÇÃO:
As culturas são produzidas pelos grupos sociais ao longo de suas histórias, na construção de suas formas de subsistência, na organização da vida social e política, nas relações com o meio e com os outros grupos, na produção de conhecimentos, nas atitudes a serem tomadas, enfim na vida cotidiana como um todo.
Especificamente falando, a sociedade brasileira é preconceituosa e discriminadora, o Brasil precisa aprender a conviver com as diferenças sem hierarquizá-las. De acordo com LOPES (2001, p.21-25) “o Brasil é, sabidamente, um país multirracial e pluriétnico, o que por conseqüência, implica a existência de diversidade ou pluralidade cultural, muito embora exista enorme dificuldade de reconhecimento dessa diversificação por parte de muitos brasileiros”.
Sabe-se que no princípio eram índios com suas diferentes etnias. Depois começaram a chegar os brancos, logo em seguida, foram trazidos, como escravos, negros africanos. Quer queiramos ou não, mesmo sem considerarmos as influências culturais, já somos um país plural, somos resultado da mistura de muitos povos, de muitas culturas diferenciadas.
Somos condicionados a aceitar pacificamente uma cultura branca ocidental, desconhecendo as demais manifestações ou considerando-as culturas subalternas, primitivas, sem valor maior para a formação da sociedade.
É possível observar a forma como os povos são culturalmente monopolizados, na carta que os governantes dos Estados Unidos, Virginia e Maryland enviaram aos índios das Seis Nações:
Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os Índios das Seis Nações... Logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns dos seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando...Eis o trecho que nos interessa:
"... Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração.
Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos aos saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.
...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou conselheiros.
Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão, oferecemos aos nobres senhores de Virgínia para que nos envie alguns de seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens.(BRANDÃO, 1998, p.18-19)

Uma das principais tarefas do educador, enquanto influenciador social e mediador de conhecimento, são o de possibilitar com que os seus alunos compreendam a não existência de cultura superior ou inferior; certa ou errada, e sim culturas diferentes, que devem ser respeitadas.

DESENVOLVIMENTO

Para viver democraticamente em uma sociedade plural é preciso respeitar os diferentes grupos e culturas que a constituem. Sabe-se que as regiões brasileiras têm características culturais bastante diversas e a convivência entre grupos diferenciados nos planos social e cultural muitas vezes é marcada pelo preconceito e pela discriminação. Acreditamos que o grande desafio da escola, enquanto instituição socializadora, é investir na superação da discriminação e promover o conhecimento da riqueza representada pela diversidade cultural que compõe o patrimônio sociocultural de qualquer sociedade. Nesse sentido, a escola deve ser local de diálogo, de aprender a conviver, vivenciando a própria cultura e respeitando as diferentes formas de expressão cultural.
Falar sobre influência cultural é como “mergulhar” num estudo aprofundado da vida de cada ser humano tendo em vista a influência que a cultura e a sociedade têm na sua personalidade e no seu modo de viver.
A influência cultural na educação deve ter como meta à formação da criança enquanto ser humano criativo, dotado de inteligência, proporcionando que o mesmo possa expressar-se e intensificar o relacionamento com outro indivíduo.

A criança, como todo ser humano, é um sujeito social e histórico e faz de uma organização familiar que está inscrita em uma sociedade, com uma determinada cultura em um determinado momento histórico. É profundamente marcada pelo meio social em que se desenvolve, mas também o marca.(LADEIA, 2001, p.19-21).

Sabemos que as pessoas não nascem prontas; é o meio em que vivem, que educa moralmente seus membros. A família, os meios de comunicação e o convívio com outras pessoas têm influência marcante no comportamento da criança. E, naturalmente, a escola também tem. A escola participa da formação moral de seus alunos. Valores e regras são transmitidos pelos professores, pela organização institucional, pelas formas de avaliação, pelos comportamentos dos próprios alunos, e assim por diante. Isso significa que essas questões devem ser objeto de reflexão da escola como um todo, ao invés de cada professor tomar isoladamente suas decisões.
De acordo com os PCN (1997, p.156) o entendimento do mundo é formado, fundamentalmente, a partir do cotidiano. O conhecimento das pessoas de maneira geral é rico em experiências vividas. Seus valores e crenças influenciam o comportamento no âmbito da família, da escola e do trabalho.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais enfatizam o ensino e a aprendizagem de conteúdos que colaboram para a formação do cidadão buscando que o aluno adquira um conhecimento com o qual saiba situar na sua própria vida as relações existentes entre os seres humanos (MEC. 1997), isso só será possível a partir da influência que a criança obtém no inicio de sua vida.
Segundo CORTELLA (2001, p.57) o ambiente escolar proporciona uma experiência sociocultural insubstituível, não apenas por ser um espaço de convivência, de formação e informação, mas também porque lá há lugar para os sonhos, tristeza, compartilhamento, desejos, enfim.
O convívio escolar refere-se a todas as relações e situações vividas na escola, dentro e fora da sala de aula. A busca de coerência entre o que se pretende ensinar aos alunos e o que se faz na escola é também fundamental.
Um dos pontos chaves da influência cultural enquanto tema pedagógico é o envolvimento que proporciona entrelaçamento da escola, comunidade e sociedade, o que faz com que amplie questões do dia-a-dia com relação às diferenças existentes entre seres humanos. Dessa forma a influência sociocultural oferece oportunidades aos alunos de conhecerem suas origens, sua história como indivíduo participante de grupos culturais, propiciando a compreensão de seu valor e a elevação de sua auto-estima enquanto ser humano digno e que merece respeito.
Através da escola a criança te,m a oportunidade de adquirir conhecimentos e vivências que ajudam a conscientizar os alunos quanto às injustiças e manifestações de preconceito e discriminação. Ela como pertencente ao sistema social, tem juntamente com outros componentes desse mesmo sistema, a tarefa de desconstruir essa hegemonia cultural que nos é imposta desde que o Brasil fora “descoberto”, dando oportunidade às demais de serem conhecidas e reconhecidas, também como construtoras da identidade cultural do nosso país.
Cabe a escola contribuir para que as pessoas e as instituições mudem a sua visão de mundo, onde os diferentes se reconhecem e se respeitam, onde as diferenças não são geradoras de desigualdades sociais, mas sim de respeito à individualidade do seu próximo.
É imprescindível que os educadores levem em conta, o tipo de cultura que o seu aluno recebe desde a sua origem, de sua condição cultural e a motivação que o mesmo tem para inserir-se no meio educacional-pedagógico-social proposto.
Devemos ter em mente que precisamos não de um adulto consciente no futuro e sim uma criança consciente hoje para que tenhamos esperança de um futuro melhor para todos.
Contribuir para a mudança de rumo da sociedade brasileira, para que ela seja mais justa e igualitária, é de fundamental importância, mas para isso precisamos de coragem, de falar em voz alta o que se procura ignorar.
Especificamente falando da criança de ensino fundamental, que está em fase de desenvolvimento e por isso tem facilidade maior em assimilar e apreender a influência do meio, o interesse em conhecer melhor esse ser humano é inevitável, pois os educadores que são responsáveis, participantes e protagonistas do universo cultural da criança podem ajudá-la a reconstruir a influência cultural monopolizadora que teve e a se auto-conscientizarem do valor de seus atos perante a outros indivíduos.
É comum ouvirmos de educadores que não é fácil educar uma criança nos dias de hoje, pois os pais não sabem como agir com os filhos de forma a proporcionar-lhe uma formação baseada na moral e nos princípios humanos. Os seres humanos são educados através de exemplos, dos tipos de culturas que lhes são apresentadas.
É evidente que as crianças tendem a repetir as atitudes que vivenciam, isso é transmissão de cultura.
As histórias de aprendizagem dos pais interferem na formação das modalidades dos filhos, já que estes são os primeiros ensinantes oferecendo possibilidades da criança vivenciar suas primeiras experiências com o mundo. Cabe ressaltar que os pais trazem as modalidades que sofreram também a interferência de seus ensinantes.A modalidade de aprendizagem dos pais intervém na forma como o sujeito se vê quando aprende, já que os pais ocupam o lugar do espelho onde a criança se vê.(apud LIMA, D.C; ROSMANINHO, M.S.R; 2002, p.7)

É interessante que sempre agimos semelhantemente como nossos pais e educadores agiam conosco, e que muitas vezes eram criticados por nós. Isso prova que a influência cultural da relação humana é a base do cidadão que teremos no amanhã.
Uma criança sem uma referência cultural baseada no respeito mútuo é dificilmente capaz de agir, progredir e relacionar-se como pessoa de bem.

CONCLUSÃO
Sabe-se que o Ser humano é o único animal capaz de construir e transformar uma civilização adequando-se e progredindo com ela. Vive-se a era do descomprometimento com a vida do ser humano, é possível verificar isto todos os dias, seja no abuso de poder ou na lógica de quem pode mais.
De acordo com Içami Tiba (1996, p.111), “para viver em sociedade, o ser humano não necessita apenas de inteligência. Precisa viver segundo a ética, participando ativamente das regras de convivência e encarando o egoísmo, por exemplo, como uma deficiência funcional social”.
Os educadores, enquanto mediadores da aquisição de conhecimento, devem resgatar através da reformulação da cultura pré-existente, o lado “humano” do aluno, respeitando o mesmo, sem rotulá-lo, buscando informações sobre o “eu” desse sujeito, tentando entendê-lo a partir do seu cotidiano.
Confirmamos a importância da influência cultural na vida da criança com as palavras de Paulo Freire (1997), dizendo que:
Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.

Essa educação transformadora que Paulo Freire menciona, com certeza, não é restrita a uma sala de aula, mas sim numa educação cultural que é transmitida a esses indivíduos, de forma humana e social a fim de cultivar-se grandes homens num futuro nem tão distante. Paulo Freire ainda complementa dizendo que “me movo como educador, porque primeiro me movo como gente”.
É preciso enfim que os educadores incorporem estas palavras de Paulo Freire para que possam educar culturalmente seus alunos a fim de que possibilitem a reconstrução dessa sociedade capitalista e monopolizadora, para uma sociedade mais justa e igualitária respeitando a individualidade de cada ser protagonista deste meio social.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Educação Pública

Outro dia eu estava em uma reunião escolar dirigida a pais, dessas que quase todas as escolas realizam no início do ano letivo. Em determinado momento, uma mãe disse ao diretor, que esclarecia as dúvidas de alguns pais: “Estou cansada de ter de ouvir questões que não têm relação com meu filho. Creio que as reuniões devem ser de cada professor com os pais de seus alunos porque só temos interesse nos nossos filhos.”.
A fala dessa mãe é bem representativa: estreitamos muito nossa visão quanto à educação e privatizamos totalmente nossos interesses em relação a esse assunto. Só temos interesse real naquilo que atinge nossos interesses ou os dos nossos filhos. Acontece que a Educação é um tema que deve interessar a todos já que ela é um dos elementos mais importantes na construção de nosso futuro.
Uma confusão grande que fizemos foi a de fazer uma diferenciação entre a educação escolar praticada nas escolas públicas e a nas escolas privadas. Na verdade, a educação é sempre pública. O que significa isso? Que os alunos, além do acesso ao conhecimento, devem aprender no espaço escolar os valores comunitários e a convivência respeitosa, justa e democrática, se é que queremos mesmo garantir um estado democrático.
É nesse contexto que precisamos pensar a escola pública. Vamos lembrar que a maioria dos alunos no Brasil freqüenta a escola pública. O censo de 2007 mostrou que, dos 52.969.456 alunos matriculados no ensino básico, apenas 6.358.746 frequentaram escolas privadas, ou seja, apenas 12% do total. Bem pouco, não?
Por isso, se não investirmos todos na escola pública, comprometemos nosso futuro e o de nossos filhos, mesmo que eles freqüentem uma excelente escola privada. É disso que a Giulia fala em seus comentários.
Como a classe média tem optado por matricular seus filhos nas escolas privadas, deixou de se interessar pelo que ocorre nas escolas públicas. Vamos analisar a conseqüência disso para perceber como podemos colaborar, como cidadãos, para melhorar a educação escolar no país e não apenas para desfrute próprio.
Quando um problema acontece em uma escola privada, logo os pais se movimentam e, como a Giulia bem observou, como é uma classe que tem influência de grande alcance social, como na mídia, por exemplo, logo a escola trata de propor ou encontrar soluções para a situação. Claro que isso pode provocar confusão, principalmente a respeito da educação identificada como prestação de serviço, mas que é um mecanismo importante de regulação social para a escola, sem dúvida é.
E na escola pública? Frente a algum problema, os pais até podem se reunir para reclamar, mas suas reclamações em geral não encontram eco social. Nós não temos a melhoria da escola pública como uma prioridade, essa é a verdade. Quando ficamos sabendo de algum problema até lamentamos, reclamamos, mas em geral não tomamos atitude alguma.
É preciso lembrar que o acesso ao comportamento civilizado e à cidadania não ocorre por mágica ou milagre: é um processo educativo e parte importante dele é de responsabilidade da escola. Os alunos que não têm a oportunidade desse aprendizado na escola que freqüentam conviverão, mais tarde, de igual para igual na vida pública, com os que tiveram. E então, o que acontecerá com a sociedade se eles forem a maioria?

Barrados na escola

Outro dia uma reportagem na Folha colocou em evidência um fato bem interessante. Duas garotas foram impedidas de entrar na escola porque trajavam roupas inadequadas ao espaço escolar. As duas protagonistas da história, adolescentes, discordaram que suas vestes fossem escandalosas. A escola afirmava o contrário. E, para falar a verdade, as fotos publicadas não permitiram que eu formasse uma opinião para tomar algum partido. Mas, de qualquer maneira, o fato rende um bom debate já que tem sido corriqueiro.Vamos reconhecer: os pais não têm ajudado muito nessa história. Têm sido benevolentes demais com os filhos ao permitir que vistam o que querem desde que são bem pequenos e se poupando, dessa maneira, de um árduo trabalho educativo, ou ao omitirem-se de opinar sobre o assunto. Fazem vista grossa quando os filhos se vestem de modo exagerado ou até compactuam com roupas insinuantes ou impróprias para determinados lugares. Além disso, se rendem com facilidade ao fatídico argumento que crianças e jovens usam com freqüência: “-Todo mundo usa!”.E as escolas? Estas, mesmo quando se dão conta de que não há ninguém ensinando essa moçada, entre outras coisas, de que a roupa no corpo comunica algo aos outros, de que há roupas apropriadas para determinados lugares e ocasiões e de que há regras – implícitas ou explícitas – de convivência quando se freqüenta o espaço público, também se exime de assumir a responsabilidade. O ponto máximo a que chegam é moralizar a questão com os alunos ou decretar proibições e punições. Isso me faz lembrar de uma cena de um filme que adorei: “Invasões Bárbaras”. O personagem central, por sinal professor, ao ouvir o comentário de um amigo que criticava com violência os jovens da atualidade, fez um único comentário: ”-Eles aprenderiam se houvesse quem os ensinasse”.Aí está: crianças e jovens, hoje, estão abandonados à sua própria sorte porque não assumimos a responsabilidade educativa que temos em relação a eles. Por isso, são impedidos de entrar na escola porque não estão vestidos adequadamente em vez de lá aprenderem algo a respeito do assunto.Em tempo: Educar é um processo longo que nunca apresenta resultados imediatos.